sexta-feira, 30 de junho de 2017

Demora

                                                                      À S.C.
Posso dizer com certeza
Que é saudade o que sinto, é saudade!
A moça na flor da beleza
Chega de noite, já se vai de tarde...

Deixa a chorar inteira
A casa que se abriu a recebê-la
O jardim com a namoradeira
Seus olhos vistos da janela

Porta a fora, percorro sozinho
Refaço as pegadas, procuro
Nada além dos passarinhos
Ouço cantar nas ruas em coro.

A cantar também meu corpo fica
Mas demora a voltar por maldade
Minha alma cora e arrisca
Que é saudade o que sinto, é saudade...

Bojo dos sonhos

Teu beijo me fala em carícias
E afagos de lábio loução
As despudoradas delícias
Que nunca são ditas em vão...

A textura da língua macia,
Deslizando em minha boca, fascina.
É o farol que a lua anuncia
Nascendo por detrás da colina.

Meu lânguido corpo fremente
Teu hálito respiro em volúpia
Acendendo em teu beijo ardente
O sentir que a lanugem arrepia.

Escoro em teus gentis abraços:
Sou teu sem disputas, sem pranto!
Meus medos dissolvo em teus braços
Pudibundos, os quais torno meu manto.

Ris de mim...decerto! E eu bem te entendo...
Mas teu riso é-me um bálsamo que cura
Em tua saliva vou me derretendo
Tu ris e meu pejo perdura.

As lascivas palavras que me dizes...
Sou feliz morando em teus versos
Pensamentos em tua voz são mais felizes
Mas teu gosto em minha boca é perverso.

Liquefeito em suor te perscruto
E teu corpo minha boca procura
O teu beijo me ganha se contra eu luto
Imiscuindo-se em minha loucura.

Morrerei dos teus beijos ausentes
Nos milésimos de segundos passando
E o ponteiro das horas descrentes
O relógio vai recuperando.

Como uma nódoa na folha da vida
A luz opaca que fulgiu e se apagou...
Serei um verso que a tua voz rouca e esquecida
No bojo dum sonho balbuciou.

domingo, 25 de junho de 2017

Eu não viverei cem anos

Eu não viverei cem anos,
Nem chegarei perto disso.

Há um sistema universal de coisas
Que impede gente como eu de viver muito.
É tudo muito bem definido nos moldes internacionais
Tim tim por tim tim, sem negociações.
As exceções são raras e sempre moram longe
Lá onde olhares curiosos não conseguem chegar
Onde braços de guarda não alcançam a tradição.

Meu tipo - raríssimo, admito - é de andar sozinho
Olhando ao redor, cascabulhando nas entrelinhas de palavras não ditas
Os sotaques, acentos regionais
Calos nas mãos e nos pés das frases mudas
E, nas pessoas, procuro sentimentos inexistentes
Faço projeções descontínuas
De um ser que não sou e que não me interessa ser
Só para aprimorar meu arrojado tato para viver na infelicidade.
( Ou posso estar enganado e ser sozinho nessa árdua tarefa...)
E disso entendo bem: sorrir sem emprego,
Frequentar lugares que não tolero,
Estar com quem em nada me acrescenta.
Sou a tradução da estupidez humana
Compartilhando da rotina universal de exploração e cultura
Do pior que a alma humana oferece mas sem perder o bom humor.

Quem é como eu sabe que cem anos é tempo demais
Para sobreviver sob fanais a irradiar venenos
Brancas angústias que nos minam pouco a pouco
E se não nos matamos em doses homeopáticas
Nas desgraças diárias da exploração
Contamos aquiescidos frente aos canhões,
As horas de tortura mundana
Que nossa pele burilada pelo medo suporta.
Aprendi a ser meu pesadelo, um espelho de auto-reflexo
Mostrando de mim para o mundo o que a vida me deu de pior.




sábado, 24 de junho de 2017

A farda fareja melanina

A farda fareja melanina
Olfato canino para pele preta
Balas perdidas que nunca se perdem em condomínios
Vão achar repouso num corpo periférico.

Nasci morto em oitenta e nove
Ganhei minha certidão de óbito de uma enfermeira:
A raça é preta!
Jovens que se parecem comigo: todos mortos!
Andando ou num caixão, sem arma ou de fuzil na mão.
Mortos-vivos no corredor da vida
Esperando nos tornarem mortos-mortos.
Enterrados em celas lotadas ou barracos apertados
Em covas de indigentes. Somos os mesmos mortos.
A dura é dura mais no peito que na cintura
E dura tão pouco no tempo mas, na memória,
Quanta história nessa vida merencória!
Meus olhos negros sangram água do mar
Em mim, um gancho repucha minhas entranhas
Minhas mãos fizeram calos no chão; e o chão nos meus joelhos.
Lábios de banzo, choro diluído
Nas trincheiras desarmados
A vida nos tem testado os olhos mais que o peito.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Eu sou um grito

Meu corpo é inteiro palavras:
Eu sou um grito que se move.
E, como tal, nem sempre sou ouvido
Abafado pelas buzinas e sirenes,
E o silêncio do interior das pessoas vazias.

Refúgio

Nunca soube bem fazer poesias.
Essa história de ser parnasiano e não ter sentimento
Ser ultrarromântico sem ser concreto.
Sou outro em outros tempos, o outrora atual
Presente em um passado que não vivi
Anacrônico ante aos meus contemporâneos.

Poesia me é o refúgio. E dela eu sou cativo.
No seio das palavras encontro meu bálsamo,
Guio meus pensamentos por rimas e versos.
Imerso no turbilhão de frases e paráfrases e pontos e
Vírgulas e acentos eu escrevo, conserto, acerto, revejo.

Sofro calado minhas desgraças
Enquanto no papel em branco eu vejo um mundo
Uma hora cinza, outra hora colorido. Mas sempre vejo
O que a realidade me mostrou em sua face mais sincera.
Sou poeta do fim dos tempos. Grito lutas,
Grito versos de verossimilhança duvidosa
Enquanto as ruas conservam em suas curvas
A invulnerabilidade do ódio humano.

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Valse de C

Desce desse palco alto
Sobe no meu bonde
Que eu te mostro onde
Meu sonho começa
Vem sem muita pressa
Que o tempo é nosso
E me diz que eu posso
Te pedir uma dança
Ficam na lembrança
Os passos girantes
E você elegante
Me sorrindo diz
Que para ser feliz
Um compasso já basta
Arrasta esse tecido
Do vestido branco
De véu sobre o rosto
Escondendo gosto
Na simplicidade
Não dói a verdade
Dita com jeitinho
Afasta com carinho
Os móveis da sala
Espalhando os brinquedos
Vem brincar sem medo,
Com nossas crianças
Pois a vida passa
Tão depressa, preta
Que quase ameaça
Nem ser de verdade
Ser somente uma grande brincadeira...




quinta-feira, 8 de junho de 2017

Moinhos

Poeta preto faz poesia preta:
Não tem escapatória.
Toda expressão da alma reflete a pele.
As máquinas quando se juntam
Não falam de óleo, de botões
Conversam sobre quem as manipula.
Pouco ou muito, sorrisos e sanções
Vão moldar em sua medida
Falas e discursos, vida e modus operandi
Vão dando ao rio o seu traçado
Até que transborde ou desague.
Nessa terra de ventos senhores
Moinhos parados sussurram
Planejam a libertação.


segunda-feira, 5 de junho de 2017

Branco, branquinho, brancão

Branco, branquinho, brancão,
Se acham bonitos bancando o negão
Põe dread, põe trança e acha maneiro
Depois vai lá ensinar os pretos nos terreiro
Acha cota bobagem: " todo mundo é igual",
Mas só contrata branco :" não é pessoal",
Vê nós como o empregado, lixeiro ou pedreiro,
E fica assustado quando vê nós engenheiro...

Branco, branquinho, brancão
Acha que preto correndo é ladrão
Tá sempre em foco no horário nobre
Mas sabe que ri enquanto um preto sofre
É pobre mas sabe que o shopping te quer
É padrão e sabe que preto não é
Acha que eu exagero quando fico puto
E choro pelos morros dia a dia de luto

Branco, branquinho, brancão
Na novela das oito na televisão
Teu mundo é tão lindo, polícia te abraça
E os pretos pacíficos espancados na praça
Mendigo branco nunca é o vilão
Na cracolândia chama a atenção
É gato, é modelo se policial
Tem cabelo de anjo, é especial
Seu dia tá perto, se liga, cuzão,
Vai morrer primeiro na revolução.