sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Encontro


Me encontro comigo
Quando chego em casa
Me pergunto do meu dia
Me respondo confuso
Quase sempre me entendo.
Jantamos em silêncio
Pensamos tão parecidos
Me abraço e relevo meus erros
Atrasos, procrastinações
E me prometo: amanhã vai ser melhor.
Durmo comigo, de conchinha.
Eu que saí de casa e eu que cheguei.
Aprendemos tanto juntos que não compensa
Criar um clima hostil com alguém que luta tanto.
...Sento no chão desse banheiro compartilhado
A água quente cai sobre mim.
Penso se Vinícius e Goethe
já usaram banheiro compartilhado fora de casa
Fazer poesia é o mais simples dos atos burgueses
Pensar a palavra, deixar que nos molde
É água correndo no corpo às sete horas da manhã.
Poetas também passam fome
Poetas também passam sede
Eu passo todos os dias pelas mesmas ruas
Cumprimento o motorista do meu ônibus
Tiro um cochilo antes de chegar ao meu destino
Quase todos os dias já sorri antes das oito
E sorriso é como poesia: tem nada a ver com dinheiro.
Tem a ver comigo, com as palavras que me escolhem
Que me deixam pensar no que vejo
Eu parnasianaria palavras mas as deixo livres

Ignorante

Uma palavra foi dita por um tolo
Andou quase nada e caiu
Não chegou a nenhum ouvido.
Catada pelo ignorante
Serviu-lhe de consolo…


Alívio matutino

Passei agora uma gostosa manhã
Lendo poesia.
Me senti um burguês safado.
Respirei.
Lembrei-me que trabalho desde os onze
De alguma forma, para ter dinheiro.
Ah, senti um tremendo alívio!
Como a sociedade me devia isso!

Pra ser sincero

Para ser sincero
A poesia é exata
Ao dizer pouquíssima coisa
Querendo dizer nada.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O corpo do outro

A benção.
Há tempos não te falo
Das rusgas da escola
Da saudade do meu irmão
E das saudades que sinto,
Teus ouvidos estão cansados.

O mundo é calvo no mar
Suor que bate na costa
E escorre terra a dentro.
Sessenta porcento água
Sais minerais e microorganismos
Eu também sou um pedaço do mar
Que anda e corre, o mar me habita
Vez por outra em mim transborda.

Minha vida é opaca
Translúcido é o silêncio.
Calo meu pulso para melhor te ouvir
O conselho sincero: levanta-te e anda...
Vagabundo!
Lázaro chegou antes de mim.

Me flagro sendo um reflexo
Quantas Anas e Marias e Isabeis
Cabem num só espelho?
Posso não ser só eu o tempo todo
Mas preciso varrer a poeira
Do rastro que deixo
Ao dar festa no corpo dos outros.







Contorcionista

Deus escreve certo por linhas tortas.
Sou contorcionista.
Mas também sou analfabeto...

Pior que a vida

Detesto tanto a vida que não morro.
Ela quer acabar comigo.
A vida é ruim. Eu sou pior.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Aurora burlesca

Pode parecer uma Aurora burlesca
Esses dias que nascem sujos
Trazendo a lama dos corações cansados
Esses dias que nascem vermelhos

Mas aquieta seu peito para o som das cores
O sol colore o horizonte porque ouve os pássaros
O céu é só uma tela, o ar o auto falante
E ao passear no céu de azul avermelhado
As asas nos convidam a ocupar o chão
A terra que também se clareia na Aurora.

É estranho que não haja paz nem na terra e nem no céu.
Pior seria a paz imposta por canhões
A paz que ao balançar a bandeira branca
Escureça os dias, emudeça o ar, descolore o horizonte.

Amanhecemos para o mundo totalmente nus
Mas só nos despimos de inocência quando é meio dia
E antes de fecharmos os olhos,
Bem depois do crepúsculo da vida, lá estão
As cores da Aurora, o cheiro da terra, o som do ar
E nós nos diremos sortudos pelos nossos sentidos.




Não melhora a saudade quando oramos

Não melhora a saudade quando oramos
Mas fechar os olhos nos aproxima de nós
É divino o silêncio.
Acima de seus domínios
Só o barulho do quebrar das ondas.

A natureza ensina
Na neve que cobre as montanhas sobre as nuvens
No fundo do mar escuro como a noite
É preciso ter-se inteiro
Com as contradições que nos tornam nós
E nos tornam nós, desses em cordas
Com nossas voltas, nossa linearidade
Nas teias que traçamos pelo caminho.

As pessoas são só insetos
Aranhas e formigas e gafanhotos
Pés compridos ou pequenos
Pulando, caminhando, voando baixo
Parando em cantos de paredes
Em redes de captura, na química dos lábios
Nos zombidos que nos atraem.
Racional é o amor que nunca erra em contradizer-se.



Regalo


Palavras me regam
E a cada conversa eu cresço um pouco.
Ouvidos atentos me nutro
Silaba por sílaba se faz banquete.


Talvez eu seja uma planta letrada
Com meus pés enterrados
Sobre uma página da vida
Dessas complicadas, de parágrafos filosóficos
Atordoado entre figuras de linguagem
Que me fazem um obeso da erudição.

Não que eu absorva tudo com minhas raízes.
Palavras precisam ser degustadas
Se quiserem ser bem digeridas
Dai a voz amiga, vetor de propagação.


Nos dias me torro se chovem palavras.
Bom é que a chuva deixa a noite amena
Com preguiça e satisfação
De quem tá fazendo o que é preciso ser feito.

Vou me cuidar com tuas palavras
Sentir-me em eterno crescimento
Meus frutos sempre serão versos e estrofes
E novas palavras descerão de meu galhos
Boas mensagens que meu rosto transmitirá.




sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Tango

Eu nasci triste como um Tango
Na beira doutro Prata, na foz do rio. 

Fora de mim, como o portão de casa
O desconhecido me consome 
Livros sobre cabeceira, nenhum cigarro
Tenho fumaça que me sai da cabeça
De tanto pensar-me no mundo.

Sou um mar diverso, apoético e irreal
Concreto nas marés que me assombram
E me tornam outro, corpo e mente
E tudo além de mim é praia e asfalto.
Nas minhas ressacas, destruo com água salgada
Palavras que me ferem devolvo
Em ferozes versos de poesia.

Me conheces, na beira da costa
Onde o horizonte começa 
Meus balanços navegam peixes
Meus ventos são formas de criar portais
E eu sou o companheiro fiel
Tempesteio a quem me desafia
Mas só náufrago barcos forasteiros
A quem não tem vocação pra navegar-me.

(Sento em meu cavalo, mas não tenho cavalo
Galopo num imaginário azul cristalino
Sem nódoas, sem turbulências
É como se em mim nunca ventasse
Alísios, monções vêem me visitar
Não há solidão no vazio azul.)

Quem do céu me vigia
Lá longe, onde acaba o mar
Trouxe a mim uma antiga cantiga
Que costuma cantar ao me ninar:

"Um céu de mar esconde a estrela. 
Estrela molhada pode flutuar?
As gotas caem sem ter estrelas
Estrela, estrela, onde andará?
Caminha calma pela madrugada
Também meus olhos possuem mar
Deságua em mim a chuva espessa
Nenhuma estrela de mim há de brotar."

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Suor

Pode ser que sejam lágrimas
Mas eu duvido. 
Voltei há pouco dos exercícios
Segui regrado
Esforço continuo, sais diluídos
Escorrem rosto à baixo.

Tempero a minha boca
Meus olhos ardem
Não podem ser lágrimas
Não há motivos
Eu corri, me esforcei
Como sempre
Com a rotina do treino
Sou comprometido.

Porque então abrir o mar
Em meus olhos,
Transbordando a boca?
Ofegante, tronco emborcado
Mãos sobre os joelhos e soluços.
Tudo é permitido:
Sorrir, chorar, sorrir.

Eu me repito, eu ciclo
São só exercícios!
Suor nos olhos, dia corrido
Amanhã nasce outra vez
Bom dia! 
Trabalho e suor quando à noite
Ou seriam lágrimas...mas eu duvido.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Gravação

Ponho janelas em teus olhos
As cortinas você traz de casa.

Uma música na tua voz ecoa
Por um dia inteiro
Reverberando, vai se diluindo
E morre. Logo recomeça.

Não cansa, conhece todo canto
Uma gravação perene
Não quero que acabe.




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Teus olhos

Teus olhos
Leio teus olhos fechados:
Não dizem-me nada, teus olhos.
Parecem duas frutas da feira
Enrugadas, quando chega ao fim...
Mas quão belos podem ser
Teus olhos fechados?
Tuas rugas e cicatrizes...
Fendas do asfalto; tua pele
O rosto queimado, marcado
Olhos que tremem querendo se abrir
Flor que desabrocha ao pé da mata
Dos teus cabelos crespos.
Tolice minha! Silêncio na face
Teus olhos calados
Disseram o que eu queria ouvir!