quarta-feira, 22 de abril de 2020

Soneto

Hei de morrer só, com a mão vazia,
Sem outrem a segurar minha mão.
Hei de cantar minha romaria
A louvar a sorte da solidão!

Nenhum beijo de mãe, irmã ou de tia,
Nenhum abraço, nenhum choro em vão....
Cairão lágrimas na terra fria
Nenhuma, porém, sobre meu caixão.

Meu único amor será liberto
Meu peito por flores será coberto
Meus olhos, finalmente, fecharão

Deixarei pra trás minha fantasia
Não fui feliz em vida nenhum dia
E nada sobre mim escreverão.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Chuva de verão

Viver é chuva
Queda brusca
Mas logo passa.

Se temporal
Moção invernal
Intensa água.

Olhos são nuvens
Abrigam vida
Se precipita
Suicídio em massa.

Eu sou um rio
Seco e vazio
E chuva em mim
Já nem tem graça.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

O tempo chega

Já não há poeira nas estantes
O chão reflete a minha imagem.
Os espelhos me mostram velho
Os talheres todos guardados
E tudo está onde deve estar.

Como não há livros fora das prateleiras
Sobrou-me tempo, após as séries e filmes
Após as leituras intermináveis
Depois de aprender tantas coisas sem sair de casa...
Sobrou-me tempo para ver que o relógio não anda.

Faltou ensinarem-me que não há receitas
Que os livros de autoajuda sempre são falhos
Que os olhos não respeitam a razão
E que a saudade não se cala com distração.

O tempo chega, ensina a fazer crochê
Conversa enxugando meus olhos
Promete que não se vai sem estancar meu choro.
Consola-me, me nina até dormir.

Mas o meu peito reclama em soluços
A vizinhança se aborrece com o silêncio
Não sobraram sorrisos para por no rosto
Pois o final de nós foi como todos os começos um pouco antes de começar.

O peso dos mortos

O peso dos mortos afunda a terra
Draga os vivos em um enorme buraco
O solo cede: vivos e mortos estão no mesmo lugar.

Memória
Um tronco no qual tropecei
Me revelou que abaixo de mim estou eu.
Onde piso é onde caio e onde me levanto
Se me dão à mão, subo depressa
Senão, vou no meu levantar lento
Sentindo o peso do meu corpo sobre as pernas
Desenrolando meus joelhos que me aguentaram
Nessa dura jornada que é me manter de pé durante o dia.

Costumo passar horas desatentas
Lendo notícias repetidas, sabendo da vida dos outros
No jornal, disputas inverossímeis
A realidade se apresenta para que não saibamos da realidade
Uma mentira aqui, uma manipulação política acolá
E mais uma vez o dia se vai sem eu ter dado atenção
Às músicas que quis compor, ao livro que não terminei
Às palavras que se fossem ditas me trariam o amor em sete dias
E as ciganas, cartomantes, oráculos, benzedeiras e ditas mães de santo
Teriam que me reconhecer como uma delas.

Dou folga aos padrões morais de onde fui criado
Não tenho pedido benção aos mais velhos
Sento à mesa sem camisa (que tipo de pessoa me tornei?)
Parece que me tornei dono da minha vida
Com meu próprio jeito de dar errado no que faço
Experimentar coisas novas e fazer dívidas inevitáveis.
Tenha pena de mim, futuro! Não sei lidar
Com bilionários filantropos, intelectuais sem estudo
Cientistas criacionistas e gente sem bom senso

Parece-me que vai chover (ou chove todos os dias)
A terra é arenosa por aqui, cuidado onde se pisa
É tudo um enorme cemitério de pretos e indígenas,
Sepulturas em pedra portuguesa e epitáfios em Latin.
A lápide afunda com o peso dos mortos, a água amolece a terra
Os vivos aguardam sua vez, cada um a sua maneira
Crentes na Igreja, Cientistas com sementes nas mãos
Sobre os ombros do capitão da nação esse enorme navio preso à terra:
- Lançar âncora, marujos! Estamos de partida!

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Olhos bobos



O que eu posso dar a mim senão a chance de ver teus olhos bobos
A me olharem todos os dias pela manhã e ao anoitecer?
Toda a riqueza do mundo moraria em mim
Se uma palavra da minha boca, saindo distraída
Esbarrace em teus lábios e te abrissem um sorriso...
E quais ouvidos poderiam ouvir tão atentamente
Minhas histórias dos dias mornos, dias pacatos
Em que compro pão, em que vejo Tevê ou volto do trabalho aborrecido?

(Os planos que fazemos nesses dias que escurecem de repente...
Os papéis de parede que escolhemos sem acordo
Os nomes que daremos a tudo que nascer de nós
Os beijos de despedida antes de despertarmos…)

Renego os olhos que me olham torto, os que me olham e não me vêem, os que me olham e me desejam mas não são os teus.

São os barcos que se movem, as ilhas permanecem
Algumas, com o tempo o mar encobre
Outras estão sempre ali, a nos ofertar um porto seguro
A nos tirar da boca um suspiro de alívio
A nos trazer o som das gaivotas
A nos brincar com um horizonte mais que azul.


Quem é marinheiro, como eu sou
Se aventura em mares revoltos
Apreciam um mar quieto, águas tranquilas
Não têm dúvidas sobre a importância das ondas para aperfeiçoar o marinheiro.
Mas o mar não tem cabelos e navegar demais cansa
Por isso é bom ter terra firme, saber onde se deixa o navio
Ter o prazer de poder apreciar, da praia, o mar.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Servos e senhores

Me disseram já não haver servos nem senhores
Tu que me ouves,  juro: não minto!
Olhei para o escuro do céu noturno
As estrelas ainda tremeluziam
Nada novo encontrei no espaço
Porque aqui embaixo algo mudaria?

A Terra é a Terra desde antes da história
A barca do passado sempre aporta no futuro
E o ciclo se completa quando os homens sentem fome.
Participo desse giro em rotação e em translação
E todas as voltas me levam para o mesmo ponto.
Não há nós na linha do tempo
O amargo que se espalha na boca do povo
É a história do navegante
Que tornou-se capitão sem precisar navegar.