sábado, 31 de janeiro de 2015

Mudar-se

Está acabando a água no sudeste do Brasil
Por isso eu vou aproveitar pra me mudar
Vou mudar minha postura quanto ao governo

Vou mudar minha postura quanto ao desperdício
Vou mudar minha postura quanto ao meu vizinho
Vou mudar minha postura quanto ao desmatamento
Vou mudar minha postura quanto a minha inação,
Vou mudar minha forma de protesto
Vou mudar minha indiferença com as desigualdades sociais
Vou mudar minha distância frente aos acontecimentos no mundo
Vou mudar minha postura de inabismação frente aos assassinatos da polícia militar
Vou mudar minhas ações dentro da minha comunidade
Vou mudar minha forma de descartar lixo
Vou mudar minha postura de admitir ser roubado por bancos e grandes empresas
Vou mudar minha forma de pesquisar o mundo
Vou mudar minha forma e minha opção de voto
Vou mudar minha forma de agir politicamente
Vou mudar o descaso que tive comigo mesmo
Vou mudar minha forma de ouvir e de ler
Vou mudar o conteúdo da minha leitura
Vou mudar meus discurso de reclamação do mundo...
Vou me mudar para o mundo em que eu quero viver
Mesmo que eu a princípio viva sozinho nele.
Vou me mudar de dentro pra fora,
Da mente para o corpo, mudar o meu comportamento
Porque senão, onde eu estiver, será uma eterna seca.



segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Terra Seca

Quando o dia abriu, finalmente,
Após longa tempestade,
As ruas tomaram a cor das águas,
E parecia que as pessoas estavam limpas
(Ou pelo menos mais aliviadas.)
Árvores travavam as ruas
O fluxo interrompido dos carros
Os riachinhos que se espalhavam ao lado dos meio-fios,
A esperança e a fé das pessoas
Pouco a pouco reaparecendo nos corações...
Parecia que não estávamos em guerra
Guerra contra o tráfico
Guerra contra os favelados
Guerra contra os jovens negros
Guerra contra tudo que não fosse caucasiano o suficiente
Ou que não se parecesse assim
Eles só falavam da falta d'água,
Eu sabia que havia bem mais além disso...

Os céus trazem a bonança algum dia
A tempestade que me acometeu o coração, porém,
Dura há anos e não sei se conheço a calmaria.
Meus guarda-chuvas quebrados,
Minhas capas rasgadas
(que deixam à mostra minha pele escura)
Minha bota de borracha
Tudo inundado, levado pela forte correnteza
Que nos transborda a paciência e nos afoga
No poço da nossa indignação
Fonte de onde tiramos fôlego, porém,
para continuarmos na luta...

Eles dizem que há previsão de chuvas Para os próximos dias,
pode ser mas, em mim,
há uma tempestade que não cessa
Não para de trovejar
E nem se quer sabe o que é ver terra seca.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Espelho d'água

Espelho d'água cristalina
Sina minha
Pele clara, girassol
Planto-te em meu mundo
Rego os teus  cabelos
E danças até a quarta-
feira de carnaval

Luz nesse ambiente
Eu nem sei teu nome
Quando acabar teu show
Serei teu escravo
Seguirei teus passos
Onde quer que vá eu vou.

Teus mares revoltos
Sorte que não tenho
Choro de criança ouço sem ter dó
Nas  mãos inda guardo
Carinhos que te aguardam
Sonhos que te façam rir.

Olho-te com olhar perscrutador (sim)
Quero saber bem mais
Quero tua boca
Deitar na rede e respirar tua paz.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Os últimos libertos

Não sabíamos que depois do muro,
Havia um outro muro
E que depois das correntes,
Haveria uma outra corrente.
Fora dos cafezais (ou não),
Fora dos canaviais (ou não)
Fora dos casarões
Vestidos como eles (ou não)
Andando como eles (ou não)
Ainda éramos nós porém,
Mas demoramos a perceber
Que essa era a melhor parte.

A senzala dos bisnetos dos açoitados
A senzala moral dos nossos filhos
A senzala que nos acompanha na pele
Nos olhares que nos disferem
Nas palavras que nem são ditas
Nos passos que se afastam
Nos empregos que não são para nós
Nos produtos que não temos acesso
O lugar que nos destinam não se chama favela
Se chama esquecimento
Pois é lá que morrem os nossos sonhos.

Jaz nessa terra, a nossa história.
Para os italianos: navio italiano e documentos!
Para os japoneses: navio japonês e documentos!
Para os alemãs: navio alemão e documentos!
Para os poloneses: navio polonês e documentos!
Para os africanos (sim, africanos sem nacionalidade):
Navio Negreiro, documentos queimados,
Favela, camburão e dura.
Não me venha falar em igualdade!
Não sou colono, não sou criador de gado!
Sou dos que tiveram tudo negado
Até o direito a ter direitos...

Cada olhar que morre lacrimeja dor
E enquanto o sangue goteja no chão,
Mais vermelho sangue que o deles,
Mais amargo, também,
Não há perdão concedido
Nunca nos foi dada a extrema unção.
Antes chicotes, hoje cacetetes
Nós, os últimos libertos,
Quebrando correntes com as nossas próprias mãos.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Videiras da escravidão

Negro fujão sem corrente, livre!
Foge do quê? Da realidade...
Oprimem o fruto do passado triste
As portas que não se abrem.
O sangue que marca o asfalto
A retinta epiderme que o Sol perseguiu
História que não te contaram
Passou-se há pouco, no Brasil.

Esquecimento, esquecimento,
Embranquecimento, embranquecimento!

Se houver de embranquecer a família
Esquecendo minhas raízes,
Vou morrer sem descendentes!
Homem-Baobá, simbolo da terra, sou eu!
De onde eu vim? da raiz forte!
Que toma os céus, dos caules grossos
Vou morrer tubérculo, filho da terra!
Mas não planto uma semente que não seja preta!

Videiras da escravidão,
ácidas uvas negras na história
doces famílias que dão bons frutos
reunidas no culto e na fé, da ponta à base.
O tempo fará-nos melhores vinhos que agora
E não irão mais nos pisar para extrair o nosso melhor
Pois juntos seremos árvore
Que nenhum serrote, motosserra ou bala poderá matar.
Somos raízes profundas,
nas entranhas da terra.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Acalma-te, coração

Não me leve a mal
Leve-me em silêncio para o teu quarto
E depois de ter-me em teus braços,
Sejas o que for, menos saudade.
Quero-te sensível como és,
Não para conter os possíveis futuros revés,
Nem para saciar-me a fome de sexo,
Quero-te porquê te gosto e porquê te quero,
Senão, não tomaria o teu tempo.
Sou tolo e me envolvo facilmente,
E sorrio com qualquer reciprocidade,
Não idealizo mulheres, na verdade,
Procuro apenas alento e companhia.

“- Acalma-te, peito, não é ela ainda!,
Tu verás tua dama, malfeita, algum dia,
Espera, há de chegar tua vez!”.

Vejo-a como um espelho em turva água rasa,
A melindrar sentimentos que havia esquecido que tinha,
Refletindo meus medos de uma forma mais nítida,
Que meus olhos conseguem ver em minha alma.

“Acalma-te, coração, acalma-te:
O que dela te tem não é amor e nem promessa,
É a exata medição da pressa,
Que tu tens ao lançar-te nesse abismo.
Não há espaço para mais ninguém naquele corpo,
Está há muito muito ocupado por si mesmo.”

Liberdade é solidão,
E solidão é libertadora:
Sem nós, sem nós, sem laços.

Não foi o Universo quem te presenteou comigo,
Fui levado a ti por circunstâncias da vida,
Mas sou uma onda no mar, vaga clara,
Que oscila transparente sob o céu,
Sou um ápice e um vale, que caminha,
E talvez, tanta variação não caiba em tuas mãos.
Eu sou limitado e reconheço,
Que tu tens sido mais do que eu sonhei desde o começo,
Apenas por não ser perfeita, e nem tentar ser.
Gosto do carnal, do profano,
Pois divindade é bela demais,
E eu sou feio, como o mal tempo:
Sou uma chuva que rega plantas murchas,
Mas murcha plantas desabrochadas demais.

Estou à ponto de perder-me em tudo,
No amor: por querer viver um lívido mas verdadeiro;
Na poesia: por compor versos sinceros para uma grande mentira,
E assim vou caminhando ao seu lado,
Como se eu não a quisesse com sinceridade,
Como se você quisesse saber quem eu sou de verdade,
Como se tivesse havido um possível amor em nós.