terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Como eu posso gostar de uma pessoa branca?

Como eu posso gostar de uma pessoa branca?
O que eu diria ao meus filhos, meus netos?
O que eu direi aos meus parentes, tios e tias, irmãos e irmãos, meus pais e avós?
Logo eu, retinto como sou?... De uma pessoa branca? Aaahh!
Os brancos invadiram meio mundo
Saquearam todas as culturas que encontraram
Caçoaram do meu cabelo na infância
Tão promovendo a ignorância
Eu lembro dos brancos no colégio
Sempre fingindo serem frágeis, aproveitando o privilégio.
Desde cedo eles aprendem:
Chamar negro de neguinho, diminuir a cor da gente…
Nossa humanidade posta em cheque por pessoas simplesmente brancas.
Esse é o legado dos que dominam o mundo,
Preconceito como herança?

Branco velho, gordo e e bem quisto
Criaram o racismo e todos os preconceitos
E ainda são tidos como confiáveis...confiáveis! Confiáveis…?
Como posso gostar...logo eu, retinto como sou...de uma pessoa branca?!
" - Nem todos, nem todos!", eles diriam
Ok, eu acredito, mas e a hipocrisia?
Ver um preto morto na calçada
E a vida seguir em frente como "não aconteceu nada!"
Vocês se acostumaram a nos ver nos restaurantes
Guardanapo na mão, bandeja com seu refrigerante
"- Aqui seu prato senhor." Falei isso de terno uma vez...ninguém estranhou
Mas se falo "pode entrar, eu sou o Doutor"...
Brancos e suas manias: brincar de tiro ao alvo nas periferias
Favela é campo minado:
Se tem gente de farda, tem preto alvejado.
Me ajudem a explicar:
como posso gostar?

E ainda assim eu gosto…E pior, confesso:
Alguns eu amo!
Amigos e amigas, conhecidos de muitos anos.
Ah, Estocolmo, seu danadinho...
Alguns me perguntam "o que fazer para ajudar na luta?"
Ai, Malcolm X...como respondo essa pergunta?
Branco é tão criativo, que quer ajuda até pra acabar com o que vem deles mesmos...
O preconceito não vem de nós pretos
Se organizem direitinho e lutem pelos nossos direitos!
Querem ajuda para tudo: plantar algodão, cana, café
Para limpar o chão, converter pra tua fé
E nós pretos ainda nas favelas…
Sabe como é.
Como eu posso gostar de uma pessoa branca?
Eu também não sei. Mas gosto, acredite se puder.

domingo, 29 de novembro de 2020

O primeiro gole

 O primeiro gole é água pura

No segundo desce o comprimido

Com a difícil missão de acalmar um corpo

De cabeça atormentada pela vida

cotidiana. Cotidiano...

"Eu vou fugir", todo dia me prometo.

O Uruguai não é tão longe.


Lido com a minha pele me pedindo trégua

Guerra infinita e eu não sou meu herói.

Vulcão epidérmico, erupção de dúvidas

Em bolinhas, feridas, coceiras

Emoções multiformes

Recado perene, psoríase

Choro que não escorre, fonte seca. 


Dos mimados que me fazem miserável

Do brigão que se cala ante à platéia

Recorro aos livros sem alento

As músicas me lembram a realidade

Não há um dia que eu não sofra

Das mesmas mazelas desse povo

Que insiste em se autoflagelar.


(Discorro sobre o tempo em equações, variáveis me tomam a mente. Empreendimento humano, abstrair ante a morte eminente da sensatez.)


Um precipício, é o que sou. 

Firme e inseguro 

E um enorme vazio de futuro.

Que venham a mim os suicidas

Que se percam no meu infinito. 

O tempo para, sou um respiro, breve segundo

Além de mim só há silêncio. 







quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Me habita

 Me habita

Abra as portas do meu corpo

Descubra-me as salas que escondo

Meus cantinhos empoeirados que não visito, as rachaduras que escondo com quadros ou enfeites.


Há tempos espero companhia para um café

Gente que converse com calma

Que não repare a bagunça, a cozinha sem vida (é que me falta um fogão)

A geladeira aberta já deixou tudo entregar

O que sobrou, te fiz um banquete

Lustrei meia dúzia de móveis

Varri o chão e passei pano 

Estou aberto a visitas.

Pode entrar

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Renascer e renascer

Você nasce sempre diante dos meus olhos
É segunda é terça...até sábado e domingo
Você não para de nascer, todo dia
De janeiro a dezembro. 
Seu sangue esparrama, placenta larga
Farta de sangue, escorrendo.
É belo teu Nascimento. 

Te vejo nascer, te vejo crescer
Te vejo no auge e na decadência
Todo dia, quando teu corpo se cobre de escuridão, eu te vejo. 
Tua morte sublime, teu corpo esvaindo
De volta à placenta.
Tua morte me tira a alegria.
Tua morte me cobre de luto. 
Estou à tua espera, todo dia
Segunda e terça e quarta e domingo
Fevereiro março abril e dezembro
Se você demora eu não acordo
Não me levanto, te espero
Não fui feito para viver sem tua companhia
Você morre eu morro
Você vive eu vivo
Eu sou eterno quando vejo você. 




Cada gole de ti

Cada gole de ti é água fresca. 

Vertendo em meu corpo

Me inunda. 


Eu transbordo por ser raso

Tudo em ti é profundo

Caverna e poço

De imenso e inesgotável prazer. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Estratégia de futuro

Eu descobri uma estratégia pra chorar em silêncio

Pra fazer terapia sem minha terapeuta

E é tão simples que faz doer.

 

Eu vou contando os meus segredos pra mim

Sem eu saber mas sabendo. Em uma frase solta, entre risadas, 

Num post de rede social cheio de humor,

Vou falando, vou escrevendo e vou pensando

Nas palavras que não dizia em voz alta

Que agora digo do outro e sei que são pra mim

E vou de grão em grão feito galinha

Ciscando, jogando as migalhas pra trás

Migalhas do passado, eventos do passado

O Eu do passado que vive e em mim jaz.

 

 Assim sou meu profeta abridor de mares

Mares de palavras não ditas, entaladas na glote

Vou cuspindo palavras, deglutindo palavras

Pra cada palavra de dor, uma de amor

Tenho aumentado meu vocabulário

Com os erros do passado, com o aprendizado

E agora que aprendi a dar vazão

Resta saber de quantos passados meus futuros se farão...

 

 

 



terça-feira, 21 de julho de 2020

Aqui jaz

Daqui a pouco vão descobrir que eu choro
Que murmuro sozinho, que me remoo.
Se eu der bandeira todos vão perceber
As fraquezas da minha armadura de plástico.

Meu horizonte em cruz sem espada
De um beco pro mato, d'outro beco pra vala
Saio de casa nunca distraído
Com uma máscara por baixo, outra por cima do riso...

Enquanto me brota essa cachoeira torrente
Cada gota que cai eu já digo: "- É só suor!"
Me disseram: " Um dia após o outro"
Todos os dias iguais, nenhum melhor...

Rotina de fingimento, como se eu pudesse
Por toda a vida fingir que que tenho paz!
Vermelho e azul no bairro mais nobre
Pra mim é a sirene apitando "Aqui jaz".







domingo, 19 de julho de 2020

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Komm

Ainda era sem tempo
Azul de cima que observou
Dois corpos. Um pé no caminho.
Aquele oi era um adeus
Deveria ser passageiro
Em mim, sua voz foi oca
Morei nas tuas palavras
Fui homem das cavernas
Segui teu som distante
Cheguei em ti. 

Ao som do Mali
De cá e de lá, longe de nós
Nós longe de nós
Há sós brilhando
Almoço no pátio...
Nós, sem nós, porque assim?
A solidão morou nos lábios
Se fez palavra. Nós despedimos. 
- até breve! Komm gleich wieder da!

quarta-feira, 10 de junho de 2020

O corte preciso

Ninguém escreveu nossa poesia
Faço eu
Com as palavras vindas da tua boca
Dentes cerrados
Um último arfar antes do sorriso.
Desaba em mim
Escombro cármico
Ruína de desejo e suor.

Não vês meus olhos que os fecho
Enquanto a luz acende em tuas mão
Me tremo
Ainda te sentindo como em minhas entranhas
Estranho amanhecer
Teu colo em meu colo apoiado
Te levo comigo
O dia insistiu em nascer no teto
Tu roubas meus versos
Me tens anotado...

Meu chão em teu caminho
Te observa atenta a poeira,
Te seguimos
Como se fosse ontem a noite eterna
Adagas nas mãos ao me dizer adeus
Morreu em mim o passado
Jamais sairia vivo da tua presença.









 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Eu vou morrer de porrada

Eu vou morrer de porrada, não de velhice
Uma bala encrava enquanto grito
Ou vou morrer das batalhas que não travei
Das inconsequentes ações de homens da lei.

Eu vou morrer cedo e não é porque tenho pressa
A espera tem sido longa  e o dia não chega
Eu vou morrer com o coração partido e não é de amor
Ver meu povo morrendo me trespassa em dor.

Eu vou morrer sem meus olhos verem a liberdade
Meu corpo é preso ainda na cor da carne
Eu vou morrer sem glória e em solidão
Fitando o rosto de quem mata de arma na mão.

Não, não há tempo para atos pacíficos
Hastear bandeiras brancas, soltar pombas da paz
Enquanto um corpo esfria na calçada imunda
Prometemos a nós mesmos: ninguém fica pra trás.

Madames e senhores de monóculos ditaram nossos preços
Prenderam o samba e a capoeira, derrubaram a navalha
Entendam: eu morro toda sexta-feita
Numa volta do trabalho, numa ronda de rotina.

Não sou semente, não me enterrem agora
Olhem pro meu rosto: ainda tenho um sorriso?
Quem me vê de fora pensa que sou aquele carnaval
Mas me ensinaram que sou a maçã do paraíso.

Eu vou morrer...virá a mim o vosso reino?
Quantos pretos tem no inferno? Quantos pretos tem no céu?
É só mais uma morte, não incendeiem a cidade...
Não atrapalhemos os soldados no quartel!





 


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Soneto

Hei de morrer só, com a mão vazia,
Sem outrem a segurar minha mão.
Hei de cantar minha romaria
A louvar a sorte da solidão!

Nenhum beijo de mãe, irmã ou de tia,
Nenhum abraço, nenhum choro em vão....
Cairão lágrimas na terra fria
Nenhuma, porém, sobre meu caixão.

Meu único amor será liberto
Meu peito por flores será coberto
Meus olhos, finalmente, fecharão

Deixarei pra trás minha fantasia
Não fui feliz em vida nenhum dia
E nada sobre mim escreverão.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Chuva de verão

Viver é chuva
Queda brusca
Mas logo passa.

Se temporal
Moção invernal
Intensa água.

Olhos são nuvens
Abrigam vida
Se precipita
Suicídio em massa.

Eu sou um rio
Seco e vazio
E chuva em mim
Já nem tem graça.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

O tempo chega

Já não há poeira nas estantes
O chão reflete a minha imagem.
Os espelhos me mostram velho
Os talheres todos guardados
E tudo está onde deve estar.

Como não há livros fora das prateleiras
Sobrou-me tempo, após as séries e filmes
Após as leituras intermináveis
Depois de aprender tantas coisas sem sair de casa...
Sobrou-me tempo para ver que o relógio não anda.

Faltou ensinarem-me que não há receitas
Que os livros de autoajuda sempre são falhos
Que os olhos não respeitam a razão
E que a saudade não se cala com distração.

O tempo chega, ensina a fazer crochê
Conversa enxugando meus olhos
Promete que não se vai sem estancar meu choro.
Consola-me, me nina até dormir.

Mas o meu peito reclama em soluços
A vizinhança se aborrece com o silêncio
Não sobraram sorrisos para por no rosto
Pois o final de nós foi como todos os começos um pouco antes de começar.

O peso dos mortos

O peso dos mortos afunda a terra
Draga os vivos em um enorme buraco
O solo cede: vivos e mortos estão no mesmo lugar.

Memória
Um tronco no qual tropecei
Me revelou que abaixo de mim estou eu.
Onde piso é onde caio e onde me levanto
Se me dão à mão, subo depressa
Senão, vou no meu levantar lento
Sentindo o peso do meu corpo sobre as pernas
Desenrolando meus joelhos que me aguentaram
Nessa dura jornada que é me manter de pé durante o dia.

Costumo passar horas desatentas
Lendo notícias repetidas, sabendo da vida dos outros
No jornal, disputas inverossímeis
A realidade se apresenta para que não saibamos da realidade
Uma mentira aqui, uma manipulação política acolá
E mais uma vez o dia se vai sem eu ter dado atenção
Às músicas que quis compor, ao livro que não terminei
Às palavras que se fossem ditas me trariam o amor em sete dias
E as ciganas, cartomantes, oráculos, benzedeiras e ditas mães de santo
Teriam que me reconhecer como uma delas.

Dou folga aos padrões morais de onde fui criado
Não tenho pedido benção aos mais velhos
Sento à mesa sem camisa (que tipo de pessoa me tornei?)
Parece que me tornei dono da minha vida
Com meu próprio jeito de dar errado no que faço
Experimentar coisas novas e fazer dívidas inevitáveis.
Tenha pena de mim, futuro! Não sei lidar
Com bilionários filantropos, intelectuais sem estudo
Cientistas criacionistas e gente sem bom senso

Parece-me que vai chover (ou chove todos os dias)
A terra é arenosa por aqui, cuidado onde se pisa
É tudo um enorme cemitério de pretos e indígenas,
Sepulturas em pedra portuguesa e epitáfios em Latin.
A lápide afunda com o peso dos mortos, a água amolece a terra
Os vivos aguardam sua vez, cada um a sua maneira
Crentes na Igreja, Cientistas com sementes nas mãos
Sobre os ombros do capitão da nação esse enorme navio preso à terra:
- Lançar âncora, marujos! Estamos de partida!

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Olhos bobos



O que eu posso dar a mim senão a chance de ver teus olhos bobos
A me olharem todos os dias pela manhã e ao anoitecer?
Toda a riqueza do mundo moraria em mim
Se uma palavra da minha boca, saindo distraída
Esbarrace em teus lábios e te abrissem um sorriso...
E quais ouvidos poderiam ouvir tão atentamente
Minhas histórias dos dias mornos, dias pacatos
Em que compro pão, em que vejo Tevê ou volto do trabalho aborrecido?

(Os planos que fazemos nesses dias que escurecem de repente...
Os papéis de parede que escolhemos sem acordo
Os nomes que daremos a tudo que nascer de nós
Os beijos de despedida antes de despertarmos…)

Renego os olhos que me olham torto, os que me olham e não me vêem, os que me olham e me desejam mas não são os teus.

São os barcos que se movem, as ilhas permanecem
Algumas, com o tempo o mar encobre
Outras estão sempre ali, a nos ofertar um porto seguro
A nos tirar da boca um suspiro de alívio
A nos trazer o som das gaivotas
A nos brincar com um horizonte mais que azul.


Quem é marinheiro, como eu sou
Se aventura em mares revoltos
Apreciam um mar quieto, águas tranquilas
Não têm dúvidas sobre a importância das ondas para aperfeiçoar o marinheiro.
Mas o mar não tem cabelos e navegar demais cansa
Por isso é bom ter terra firme, saber onde se deixa o navio
Ter o prazer de poder apreciar, da praia, o mar.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Servos e senhores

Me disseram já não haver servos nem senhores
Tu que me ouves,  juro: não minto!
Olhei para o escuro do céu noturno
As estrelas ainda tremeluziam
Nada novo encontrei no espaço
Porque aqui embaixo algo mudaria?

A Terra é a Terra desde antes da história
A barca do passado sempre aporta no futuro
E o ciclo se completa quando os homens sentem fome.
Participo desse giro em rotação e em translação
E todas as voltas me levam para o mesmo ponto.
Não há nós na linha do tempo
O amargo que se espalha na boca do povo
É a história do navegante
Que tornou-se capitão sem precisar navegar.



domingo, 29 de março de 2020

Cidade Irreal

I


Os mortos de abril sussurram:
Esse é o pior dos meses.
O ano começou em dezembro
(No novo ano novo chinês)
E até setembro a terra espera.
É hora de enterrar os sonhos
Abandonar nossos segredos
Deixar o medo sem companhia.

Lustramos nossos móveis com verniz
Na esperança de mostrá-los às visitas.
Mas tempo veio em que as casas são só nossas
Mesmo as ruas, lar dos desafortunados
(Os donos dos calabouços
Das moradas do fim dos tempos.)

Caladas, as ruas esperam
Nos canteiros de obras máquinas esfriam
Aguardam o inverno chegar
Numa vagarosa procissão dos sobreviventes.
Eu era outro quando cheguei ao mundo
As cores dos jardins já não existem
Também as nuvens guardam silêncio
Trovões calados, tempos sombrios.

Aguardo a morte
Como o martelo de um juiz inevitável
Aos que se foram primeiro
Resguardo as preces que não fiz pra mim
Enquanto limpo e enxaguo panelas
E limpo o chão de uma casa que não é minha.
Tenho muita preguiça e cansaço
E olho o relógio como se houvesse tempo
De reviver a penúltima carta do baralho
Desse Tarot Universal.


II
 
Os filhos de abril nascerão sem pais
Pois a terra é farta e ainda há fome
Nas casas sem sorte, chão compartilhado
Máscaras nos rostos, nenhum semblante de culpa
E o teatro perde mais um talento nato.
Revendo teus senhores descobri o inapto
Rimos até a noite cair em céu mais estrelado
Finalmente a poluição baixou, concordamos todos
Uns queriam ir às ruas, foram censurados.

No berçário de estrelas também nascem sonhos
E gente, que assim é concebida.
Eu ouvia o emissário dar as boas novas
Tive medo de tudo que a saúde questiona.
A morte persegue, incansavelmente os mais frágeis
Parece se divertir com doenças e crises
Parece sorrir com uma máscara de ouro
E tanto mais lucra quanto maior a desgraça.


III

Os ricos têm dó, somente de si mesmos
Limpam as bundas com a mão dos pobres
Antes de vestirem de ternos de sangue.
Em Cancún, Paris ou Singapura
Ainda há quem se ajoelha para engraxar sapatos
E não estamos livres, se ainda vivos.


IV

Aquele vestido enganava o frio
A vista do quarto trazia uma calmaria
Nem tudo o medo leva quando é vivo
Mas um sonho precisei resguardar
Para não adoecer comigo
Guardei um pouco do que restou de mim
Em carícias e afetos.

As palavras da sua boca me beijavam tão docemente
Doces memórias, enterradas e exumadas
Pelo cadáver desse amor, que nasceu morto.
O homem traz em si o desejo sincero
De dominar a existência, se perpetuar no tempo
No fim, porém, é no amor que nos traduzimos
No ódio de quem fala, no ódio de quem guarda palavras
Nenhum olhar  me abraçou tão intensamente
Após os sorrisos, frases misteriosas, bocas se fechando
E o vestido voltou para o cesto de roupas sujas.

V

Choveu todos os dias desde então
No céu azul também choveu.

Nem uma gota de água caiu.
A espera foi recompensada com o medo:
Não há ninguém seguro em sua mansão...

Um sino...ouço um sino.

Um sino...eu ouço um sino.
Já são seis horas da manhã.
A torre da igreja pode ser ouvida
Por que há silêncio fúnebre nas ruas.
Quantos morreram? Quantos morrerão?
Eu aprendi a contemplar o vazio
Não há cura para o que mora no passado
A dor da perda é só um tempo que não chegou.

Amo o porvir, mas não o futuro
Escolho minuciosamente os grãos que piso
O chão não é sólido homogeneamente
Há de se fazer bem feito o nosso piso
Que os contratempos são a única certeza.

Se eu tivesse fé nas coisas como falo...
Queria ser o menino de mil novecentos e noventa e nove
Faz falta a certeza, a dúvida, a inexperiência
Sofrer caleja, é o exercício do coração.
Posso dizer que estou treinado.
Na fé que carrego, há tantas lacunas a se preencher
Deus não olha as horas de todos
Dispensa empregados, sacia desejos pecaminosos
E não comparece a reunião de pais.
Parece que não ouve preces ou está desatualizado.

Lá vai mais uma procissão.
Nesses tempos que meu sangue se apressa na veia
Minha cabeça esquenta e não é de febre.
Mas guardei meu choro para os mortos de abril.
Que o amor espere. Um dia baterei de frente
Tenho treinado, sofrido, guerreado, perdido, vencido
Quando eu estiver finalmente preparado
Vou tirar as luvas e descer do ringue.
Terei tudo. Serei vitorioso sem lutar.






Conversas mortas

Eu posso explicar para uma criança o que é o amor
Difícil é entender o que tenho sentido.
As ruas desertas revelam o som das casas
Na rua de baixo, quebrando o silêncio, motores.
Esperancei ouvir você chegando
Por que estou fora do seu alcance virtual.
Se você chegasse, se você viesse...
A campainha tocou, vesti meu orgulho
Aprontei palavras e ensaiei no caminho
Por que não esperava visita, mas não era você...

Maldita torre, triste castelo!
Solitário planejo a fuga ou não ser rei
Perder a coroa após ter tudo
Alcançar os sorrisos e perder os dentes.
Sem ter você na razão das coisas
Conversas mortas e piadas horríveis
Me sustento como deve ser - Sozinho
Sem tua presença para alegrar meus olhos.

Utilitário

Um dia após outro
Pois de outra forma, como seria?
Eu sobrevivo ao vírus e a você.
Ou seria a tua memória que me habita?
O fato...como cientificamente falando,
Dentro da psicanálise da coisa
É que eu peguei Lacan no sentido errado
Fui na sua direção sem compreender
Que tua estrada sempre leva ao fim.

Foram três vezes, se você se lembra
Minhas mãos te buscaram.
Sua pele linda combina com a minha
Branca e escorregadia, me escapou.
Não tenho garras, caço com palavras
E com a liberdade que aceito de quem fica.
Não vou me enganar, estou apaixonado
Meus pensamentos buscam porquês
A razão me diz que não há razão.
Sua vontade nos matou antes de nascermos.

E se for como disseram - utilitário
Que nosso vínculo more onde o sol aquece
Que nossa história seja escrita em papiro
E que nada seja como foi até agora.
Repetir história, o passado, o ciclo...
Eu evitei a sorte de viver iludido
Orgasmos, orgasmos, orgasmos, suspiro
Passou fevereiro e março passou batido
Quantos morreram antes do nosso amor de carnaval?











terça-feira, 24 de março de 2020

Tua bunda


Tua bunda destoa
No horizonte longilíneo
Rechonchudo recheio
Tão rotundo o meneio
Vai distraída,
Entre esquerda e direita.

Já não é o que seria
Se exercitada em covardia
Pelo aparelho de aço
Na opressão da academia.
O natural é belo ao toque
O tato degusta cada curva
Meus olhos congelam em deleite
Ao ver o inverso da tua frente
Tua convexidade em formosura.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Produto

Exposto como produto de loja
Minha vitrine visceral
Me mostro do avesso:
Fígado e Coração e Pulmões
E pensamentos...
Do todo - que mal sou -
Dividi-me contigo, contei segredos
Não notei o Canibal que nos comia...

Meu elo, distante
Gangorra da vida..
Pensei deixar-te
Mas como apartar-me de mim?

Me restam pedaços, que junto sem pressa
Derretendo as pontas para soldar-me
Agora toda palavra é saudade
Te salvas de mim
Que estou em chamas!

 

quarta-feira, 18 de março de 2020

Era tarde da noite

Era tarde da noite
Jesus voltou.
Um estouro, fumaça
Maior clarão.
- Ruas vazias..., Jesus pensou
Deve estar na hora da pregação...
Procurou num bar os perdidos
Procurou salvar os mendigos
Procurou, procurou, procurou...
Dois mil anos atrasado
Veio, tinha que ter vindo ano retrasado
Antes do mal acometer a nação.
Não é por mal, pai amado
Mas não tamo podendo aglomeração
Da janela de um carro chic
Alguém gritou: vai pra casa, Hippie!
Jesus, então, se pirulitou.

Beira-Mar

Abaixo as falhas;
Mar não gralha:
Acima voa.

Pesca o óleo,
Canudo grosso
Um poço fundo.

Passeia nas vagas,
Alisa, desliza,
Com o isopor.

Termina distante:
Queima o horizonte,
Um vermelho: fulgura!

Figuras passeiam,
Abaixo das vagas,
Acima da areia!

Vai e volta, diligente
Espera pacientemente
Por quem a atrai.

Espia e ama
Puxa e devolve
Brilha e se derrama.

E molha e salga
Banhando a vastidão,
De sonhos infinitos!

quinta-feira, 5 de março de 2020

Comida, casa, trabalho

Tenho que pagar aluguel
Tenho que comprar o que comer...
      Tenho que  comer o aluguel
      Tenho que alugar o comer
    Tenho tenho
Aluguel.           Comida.
              Tenho que comer com o aluguel
Tenho que pagar com o de comer
       Tenho que comprar o aluguel
       Como o que paguei de comer
       Alugar comida
       Pagar a compra
Compra compra compra paga
Aluga aluga come e paga
                       Alugar a comida
        Fome, barriga
        Tenho que pagar pra morar
                   Casa, vazia
Trabalho, trabalho, trabalho, trabalho
Como na rua, alugo a casa
Moro na rua, como em casa
Alugo a rua
Moro na rua
Trabalho na rua
Alugo a comida
Não compro a casa.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Atraso sem hora

A tabela mente
O aplicativo não se aplica
Quem sabe a hora que o ônibus passa
É o seu André, o motorista.

Incerta quarta-feira
Levo meu corpo para fora da cama
De sobressalto, apressado
Sento-me no relógio
O sofá tic traqueia
Nada impede o tempo de passar. 

Passa também o ônibus
Minha rua é pequena, ouço de longe
O pobre não tem paz
Nem para ir ser explorado
Conseguir seu sustento
Se mais de quinze atrasado
Tem desconto no holerite. 

Dou bom dia ao meu herói
Seu humor é meu termômetro
Quando em paz paro fora do ponto
As ruas parecem tapetes persas
Se a guerra lhe domina
O medo me percorre
O ônibus vira caminhão de boi
Nada mais importa, só minha sobrevivência. 

Meus semelhantes - todos são meus semelhantes
O quase rico com o carro no conserto sofre
O pobre, experiente de trajeto, sofre
O ônibus chacoalhando nos buracos sofre
E a barca segue
Sempre assim, mais ou menos atrasada
Mais ou menos adiantada
Não seguindo cronogramas

Em dias de chuva
O ponto é um abrigo
O ônibus é um alívio
Bom dia, Seu André!
Seu mau humor é um perigo!

Torrente divina

Uma lágrima escorre do céu
Principia um choro agudo.
Deus, em dias de chuva
É exatamente como nós:
Reclama por ter que ir trabalhar
Faz birra, esbraveja
Mas sai de guarda-chuva e galocha.
Dançar na chuva é bom
Mesmo quando a chuva é dentro da gente.

O mar reclama da água doce pingando
O rio transborda com a intrusa torrente
As cidades até hoje não aprenderam
Que água tanto bate até que inunda

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Encontro


Me encontro comigo
Quando chego em casa
Me pergunto do meu dia
Me respondo confuso
Quase sempre me entendo.
Jantamos em silêncio
Pensamos tão parecidos
Me abraço e relevo meus erros
Atrasos, procrastinações
E me prometo: amanhã vai ser melhor.
Durmo comigo, de conchinha.
Eu que saí de casa e eu que cheguei.
Aprendemos tanto juntos que não compensa
Criar um clima hostil com alguém que luta tanto.
...Sento no chão desse banheiro compartilhado
A água quente cai sobre mim.
Penso se Vinícius e Goethe
já usaram banheiro compartilhado fora de casa
Fazer poesia é o mais simples dos atos burgueses
Pensar a palavra, deixar que nos molde
É água correndo no corpo às sete horas da manhã.
Poetas também passam fome
Poetas também passam sede
Eu passo todos os dias pelas mesmas ruas
Cumprimento o motorista do meu ônibus
Tiro um cochilo antes de chegar ao meu destino
Quase todos os dias já sorri antes das oito
E sorriso é como poesia: tem nada a ver com dinheiro.
Tem a ver comigo, com as palavras que me escolhem
Que me deixam pensar no que vejo
Eu parnasianaria palavras mas as deixo livres