domingo, 29 de março de 2020

Cidade Irreal

I


Os mortos de abril sussurram:
Esse é o pior dos meses.
O ano começou em dezembro
(No novo ano novo chinês)
E até setembro a terra espera.
É hora de enterrar os sonhos
Abandonar nossos segredos
Deixar o medo sem companhia.

Lustramos nossos móveis com verniz
Na esperança de mostrá-los às visitas.
Mas tempo veio em que as casas são só nossas
Mesmo as ruas, lar dos desafortunados
(Os donos dos calabouços
Das moradas do fim dos tempos.)

Caladas, as ruas esperam
Nos canteiros de obras máquinas esfriam
Aguardam o inverno chegar
Numa vagarosa procissão dos sobreviventes.
Eu era outro quando cheguei ao mundo
As cores dos jardins já não existem
Também as nuvens guardam silêncio
Trovões calados, tempos sombrios.

Aguardo a morte
Como o martelo de um juiz inevitável
Aos que se foram primeiro
Resguardo as preces que não fiz pra mim
Enquanto limpo e enxaguo panelas
E limpo o chão de uma casa que não é minha.
Tenho muita preguiça e cansaço
E olho o relógio como se houvesse tempo
De reviver a penúltima carta do baralho
Desse Tarot Universal.


II
 
Os filhos de abril nascerão sem pais
Pois a terra é farta e ainda há fome
Nas casas sem sorte, chão compartilhado
Máscaras nos rostos, nenhum semblante de culpa
E o teatro perde mais um talento nato.
Revendo teus senhores descobri o inapto
Rimos até a noite cair em céu mais estrelado
Finalmente a poluição baixou, concordamos todos
Uns queriam ir às ruas, foram censurados.

No berçário de estrelas também nascem sonhos
E gente, que assim é concebida.
Eu ouvia o emissário dar as boas novas
Tive medo de tudo que a saúde questiona.
A morte persegue, incansavelmente os mais frágeis
Parece se divertir com doenças e crises
Parece sorrir com uma máscara de ouro
E tanto mais lucra quanto maior a desgraça.


III

Os ricos têm dó, somente de si mesmos
Limpam as bundas com a mão dos pobres
Antes de vestirem de ternos de sangue.
Em Cancún, Paris ou Singapura
Ainda há quem se ajoelha para engraxar sapatos
E não estamos livres, se ainda vivos.


IV

Aquele vestido enganava o frio
A vista do quarto trazia uma calmaria
Nem tudo o medo leva quando é vivo
Mas um sonho precisei resguardar
Para não adoecer comigo
Guardei um pouco do que restou de mim
Em carícias e afetos.

As palavras da sua boca me beijavam tão docemente
Doces memórias, enterradas e exumadas
Pelo cadáver desse amor, que nasceu morto.
O homem traz em si o desejo sincero
De dominar a existência, se perpetuar no tempo
No fim, porém, é no amor que nos traduzimos
No ódio de quem fala, no ódio de quem guarda palavras
Nenhum olhar  me abraçou tão intensamente
Após os sorrisos, frases misteriosas, bocas se fechando
E o vestido voltou para o cesto de roupas sujas.

V

Choveu todos os dias desde então
No céu azul também choveu.

Nem uma gota de água caiu.
A espera foi recompensada com o medo:
Não há ninguém seguro em sua mansão...

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